(Trecho do espetáculo ENGENHARIA ERÓTICA - UMA FÁBRICA DE TRVESTIS)
Sabe o que mais machuca a gente de verdade? A família. Eu digo isso porque pelo menos pra mim é assim. Sei que tem um monte de gente que nem liga pra isso, mas tenho certeza que lá no fundo a única coisa que quer mesmo de verdade é ouvir “eu te aceito do jeito que você é...”. Todo mundo quer isso. Eu sou do interior, meu pai trabalhava muito fora de casa e geralmente passava um tempão sem ver a gente. Minha mãe trabalhava o dia todo e eu era a responsável por tudo. Eu era a mais velha. Na verdade eu tinha 14 anos, mas já era a mais velha da casa. Ainda não era mulher, claro. Isso veio depois. Mas era como se fosse a mãe, porque eu tinha dois irmãos mais novos e aí eu que tinha que cuidar. Talvez isso que faça doer mais, sabia? Depois que eu assumi de verdade a minha mãe disse pra todos dentro de casa, lembro como se fosse hoje “ele sempre foi assim, vocês que nunca enxergaram direito quem ele era”. Meu irmão disse na minha cara, olhando nos meus olhos “você não é meu irmão, nem sei quem você é. Você não é dessa família. Pode ir embora”. Meu irmão disse isso. Meu irmão. Eu o peguei no colo. Coloquei comida na boca dele. Se não fosse por mim, quem ia dar comida pra ele? Ele precisou de mim. Agora eu preciso dele e é isso que tenho. Tive que agüentar muita coisa, mesmo depois de já saber o que eu era e o que eu queria. Foi então que meu avô me chamou num canto e disse “Meu filho, não tenho muita coisa, só tenho esses quatrocentos reais, se você acha que dá pegue suas coisas e vá ser feliz. Você é lindo, eu te amo muito. Mas aqui você não é feliz. Vá viver sua vida”. Ele disse isso com os olhos cheios de lágrimas. Foi a última vez que vi ele. Soube a dois dias atrás que ele morreu. Até hoje estou tentando juntar uma graninha pra voltar pra casa e rever a família. Que família, não é? Também não sei.
(foto de Levy Mota)
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2 comentários:
É mesmo. Que família...
Às vezes, talvez pareça ser assim, tanto pra quem é travesti, como pra quem é somente gay, sendo que, para nossa família, quase nunca é "somente". Ser gay é "muito e mais ainda", é coisa grave. Quase nunca um "somente".
Pra Gisele, então, não é diferente. Se fosse, talvez nem existiria. Não é diferente nem pra Gisele e nem pra nenhuma outra travesti. Não é diferente nem mesmo pra que é "simplesmente" gay.
Meus parabéns pelo blog, tá excelente! Cabaré da Dama me traz uma nostalgia do caramba! Já estou ansioso pra assistir "Engenharia Erótica!".
Um beijo!
Tiago Castelo.
Gisele, vi você quando se apresentou na Livraria Cultura, abrindo a tarde de autógrafos. Foi arrepiante. Você é de uma força incrível. Beijo!
Laerte
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