Arte para virar o mundo ao avesso

04:54 Postado por Intercâmbio entre Grupo 3X4 e Grupo POPULART /

 por Danilo Castro (http://odanilocastro.blogspot.com/)






Danilo Castro em cena do curta Se essa rua fosse minha...

Um ator que não vive a vida, não ganha subsídios para reproduzi-la cenicamente. Um ator que não se desamarra dos seus estigmas, oferece-se limitado à arte. E, definitivamente, a impossibilidade de transgressão tem caminho contrário ao da criação. Como ser artista sem se doar por completo? Como fazer arte sem pensar na sua função transformadora? Com o decorrer dos meus trabalhos com o teatro, venho percebendo quão importante é pensarmos na arte para além do entretenimento, pensarmos nela como ferramenta de combate por um mundo mais justo. E não é necessário um discurso panfletário para isso. Basta que sejamos cidadãos, críticos, com pensamentos coerentes, com respeito às diferenças.

Esse caráter social naturalmente veio se revelando em Revoar, espetáculo em que enfrentávamos a violência sexual contra crianças e adolescentes, em Uma rapadura, 3 atores & uma História, onde fazemos uma campanha de incentivo à leitura, em O Pagador de Promessas, onde o sincretismo religioso e a crítica à imprensa sensacionalista foram temas evidenciados no texto do Dias Gomes, dentre outros trabalhos que me dão orgulho como artista.

Os grupos Coletivo Cambada e 3x4 de Teatro trabalharam conjuntamente produzindo curtas-metragens para o 5º For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual, que tem realização do Centro Popular de Cultura e Ecocidadania (Cenapop) com apoio do Governo do Estado do Ceará, da Prefeitura Municipal de Fortaleza através da Secretaria de Cultura de Fortaleza, Banco do Nordeste do Brasil, Casa Amarela Eusélio Oliveira e Universidade Federal do Ceará (UFC).

Assim nasceu o “Se essa rua fosse minha...”, um curta que fala de sonhos, que mostra os desejos de travestis que só tiveram a rua como oportunidade de sustento. Sonhos calados por uma sociedade que as oprimiu em todas as fases de suas vidas. Como exigir que elas saiam das ruas, se ninguém dá emprego a uma travesti? Como exigir que elas estudem se, na prática, elas não são aceitas em escolas? Até mesmo em ambientes acadêmicos, onde há um falso cosmopolitismo, elas são alvo de discriminação, como me disse Luma Andrade, primeira travesti com doutorado do Brasil, quando tive oportunidade de entrevistá-la no início do ano. Como querer que sejam delicadas e sociáveis, se a igreja e a comunidade as excluem ou taxam-nas de anormais? Se elas são violentadas verbalmente, agredidas fisicamente e muitas vezes só têm a noite como morada? Nada mais natural do que ter a agressividade como instinto de defesa. É uma relação de causa e consequência, não de vilão e vilania.

O dever de visibilizar os LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) não pode ser visto como um incentivo à perversão ou ao “homossexualismo”*, absolutamente. A orientação sexual e a identidade de gênero independem de raça, religião ou classe social. Temos que pregar o respeito e o convívio com as diferenças, por isso a importância de visibilizar os oprimidos. Viver por uma noite a Virgínia Lispector (nome da personagem) era algo inimaginável pra mim até que me surgisse a oportunidade. O mais fácil era dizer não. Não por preconceito, mas por não me achar suficientemente capaz de carregar a alma densa de uma travesti em tão pouco tempo. E não é fácil. Sair na rua carregando no corpo o signo da diferença me tornou um bicho para apreciação, motivo de chacota ou apetrecho sexual. Imagine quantas mil coisas diferentes passaram na minha cabeça. Sentir-me travesti foi um baque, eu achava que sabia de todo o preconceito que elas vivem, mas depois de me passar por uma, entendi pelo menos um pouco que é bem mais complexo tudo isso. A prostituição acaba sendo vista quase como uma fase obrigatória na vida de uma travesti. Mas sabe o que elas mais querem? Casar com um homem bom, ter filhos, estudar, ter uma profissão digna. Coisas que a maioria das mulheres desejam. Mas esses sonhos simples são praticamente impossíveis quando se tem uma identidade de gênero diferente do sexo biológico, quando se tem um comportamento diferente daquilo que é imposto como padrão.

Mas com tantos bons atores para fazer esse papel, por que eu? Bem, a concepção proposta é de uma travesti que “canta” em Libras (Língua Brasileira de Sinais), então logo lembraram de mim devido a minha fluência no idioma. Tomei isso como uma missão, era impossível negar. Viver esse trabalho me transformou. Agora desejo que a exibição desse curta seja capaz, pelo menos um pouco, de transformar o público também. Quando resolvi ser artista, nunca imaginei que isso poderia ser uma ferramenta valiosíssima para virar o mundo ao avesso, atordoar nossas próprias convenções, hoje não consigo não pensar nisso.

Exibição: 29 de outubro, 18h, na Casa Amarela – Av. da Universidade, 2591, Benfica. - Entrada Franca.


Direção de Andrei Bessa
Danilo Castro como Virgínia Lispector
Assistência de Direção de Silvero Pereira
Argumento de Gyl Giffony e Andrei Bessa
Operação de Câmera por Luciana Gomes
Maquiagem e caracterização por Bernardo Vitor
Supervisão de Valdo Siqueira e Luciana Gomes




*o termo "homossexualismo" foi abolido e deve ser substituído por "homossexualidade", já que o sufixo "ismo" também é utilizado para designar patologias.

1 comentários:

Anônimo on 8 de setembro de 2012 às 17:26

A arte é uma arma de imenso valor e principalmente quando temos a mira correta! Abandonar o preconceito é muito além do que apenas dizer "nada contra" e também nem simplesmente abandoná-lo é se educar sobre o assunto que faz refletir o preconceito.
Arte por arte qualquer tem o alcance, mas eu prefiro arte como instrumento.

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