por Danilo Castro (http://odanilocastro.blogspot.com/)
Danilo Castro em cena do curta Se essa rua fosse minha...
Um ator que não vive a vida, não ganha subsídios para reproduzi-la cenicamente. Um ator que não se desamarra dos seus estigmas, oferece-se limitado à arte. E, definitivamente, a impossibilidade de transgressão tem caminho contrário ao da criação. Como ser artista sem se doar por completo? Como fazer arte sem pensar na sua função transformadora? Com o decorrer dos meus trabalhos com o teatro, venho percebendo quão importante é pensarmos na arte para além do entretenimento, pensarmos nela como ferramenta de combate por um mundo mais justo. E não é necessário um discurso panfletário para isso. Basta que sejamos cidadãos, críticos, com pensamentos coerentes, com respeito às diferenças.
Esse caráter social naturalmente veio se revelando em Revoar, espetáculo em que enfrentávamos a violência sexual contra crianças e adolescentes, em Uma rapadura, 3 atores & uma História, onde fazemos uma campanha de incentivo à leitura, em O Pagador de Promessas, onde o sincretismo religioso e a crítica à imprensa sensacionalista foram temas evidenciados no texto do Dias Gomes, dentre outros trabalhos que me dão orgulho como artista.
Os grupos Coletivo Cambada e 3x4 de Teatro trabalharam conjuntamente produzindo curtas-metragens para o 5º For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual, que tem realização do Centro Popular de Cultura e Ecocidadania (Cenapop) com apoio do Governo do Estado do Ceará, da Prefeitura Municipal de Fortaleza através da Secretaria de Cultura de Fortaleza, Banco do Nordeste do Brasil, Casa Amarela Eusélio Oliveira e Universidade Federal do Ceará (UFC).
Assim nasceu o “Se essa rua fosse minha...”, um curta que fala de sonhos, que mostra os desejos de travestis que só tiveram a rua como oportunidade de sustento. Sonhos calados por uma sociedade que as oprimiu em todas as fases de suas vidas. Como exigir que elas saiam das ruas, se ninguém dá emprego a uma travesti? Como exigir que elas estudem se, na prática, elas não são aceitas em escolas? Até mesmo em ambientes acadêmicos, onde há um falso cosmopolitismo, elas são alvo de discriminação, como me disse Luma Andrade, primeira travesti com doutorado do Brasil, quando tive oportunidade de entrevistá-la no início do ano. Como querer que sejam delicadas e sociáveis, se a igreja e a comunidade as excluem ou taxam-nas de anormais? Se elas são violentadas verbalmente, agredidas fisicamente e muitas vezes só têm a noite como morada? Nada mais natural do que ter a agressividade como instinto de defesa. É uma relação de causa e consequência, não de vilão e vilania.
O dever de visibilizar os LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) não pode ser visto como um incentivo à perversão ou ao “homossexualismo”*, absolutamente. A orientação sexual e a identidade de gênero independem de raça, religião ou classe social. Temos que pregar o respeito e o convívio com as diferenças, por isso a importância de visibilizar os oprimidos. Viver por uma noite a Virgínia Lispector (nome da personagem) era algo inimaginável pra mim até que me surgisse a oportunidade. O mais fácil era dizer não. Não por preconceito, mas por não me achar suficientemente capaz de carregar a alma densa de uma travesti em tão pouco tempo. E não é fácil. Sair na rua carregando no corpo o signo da diferença me tornou um bicho para apreciação, motivo de chacota ou apetrecho sexual. Imagine quantas mil coisas diferentes passaram na minha cabeça. Sentir-me travesti foi um baque, eu achava que sabia de todo o preconceito que elas vivem, mas depois de me passar por uma, entendi pelo menos um pouco que é bem mais complexo tudo isso. A prostituição acaba sendo vista quase como uma fase obrigatória na vida de uma travesti. Mas sabe o que elas mais querem? Casar com um homem bom, ter filhos, estudar, ter uma profissão digna. Coisas que a maioria das mulheres desejam. Mas esses sonhos simples são praticamente impossíveis quando se tem uma identidade de gênero diferente do sexo biológico, quando se tem um comportamento diferente daquilo que é imposto como padrão.
Mas com tantos bons atores para fazer esse papel, por que eu? Bem, a concepção proposta é de uma travesti que “canta” em Libras (Língua Brasileira de Sinais), então logo lembraram de mim devido a minha fluência no idioma. Tomei isso como uma missão, era impossível negar. Viver esse trabalho me transformou. Agora desejo que a exibição desse curta seja capaz, pelo menos um pouco, de transformar o público também. Quando resolvi ser artista, nunca imaginei que isso poderia ser uma ferramenta valiosíssima para virar o mundo ao avesso, atordoar nossas próprias convenções, hoje não consigo não pensar nisso.
Exibição: 29 de outubro, 18h, na Casa Amarela – Av. da Universidade, 2591, Benfica. - Entrada Franca.
Direção de Andrei Bessa
Danilo Castro como Virgínia Lispector
Assistência de Direção de Silvero Pereira
Argumento de Gyl Giffony e Andrei Bessa
Operação de Câmera por Luciana Gomes
Maquiagem e caracterização por Bernardo Vitor
Supervisão de Valdo Siqueira e Luciana Gomes
*o termo "homossexualismo" foi abolido e deve ser substituído por "homossexualidade", já que o sufixo "ismo" também é utilizado para designar patologias.
A era do pós-gênero?
Cynara Menezes 21 de setembro de 2011 às 15:45hLaerte já foi chamado de crossdresser, denominação utilizada para o homem que gosta de, ocasionalmente, usar roupas femininas como fetiche. Talvez o crossdresser mais famoso da história tenha sido o cineasta norte-americano Ed Wood, que vez por outra vestia trajes de mulher. Sentia que lhe acalmavam o espírito. Wood, encarnado no cinema pelo ator Johnny Depp no filme homônimo de Tim Burton, em 1994, era casado e, ao que tudo indica, heterossexual. Só que o cartunista acha que não é crossdresser como Wood porque não tem mais em seu armário roupas de homem. Nem uma só cueca, nada. “Foi a primeira gaveta que esvaziei”, conta.
Por outro lado, as travestis, brinca Laerte, ficariam indignadas se ele dissesse ser uma, por não ter a -exuberância que se espera delas. Drag queen ele não é, porque não se veste como mulher para fazer performances. Usa vestidos e saias todo o tempo, para desenhar, pagar contas no banco ou ir até a esquina. Transexual também não, porque não tem interesse em fazer cirurgia de mudança de sexo e nem está insatisfeito com o próprio corpo “biológico”. Bissexual, sim, com certeza. “Nomenclaturas não me interessam. A busca por uma nomenclatura é uma tentativa de enquadramento. Sou uma pessoa transgênera e gosto do termo ‘pós-gênero’”, explica o cartunista.
O fato é que não existe atualmente uma palavra para “enquadrar” Laerte. Tampouco há resposta definitiva para a questão: quantos gêneros existem na realidade? Só homem e mulher parecem não ser mais suficientes. Desde a quinta-feira 15, os australianos terão em seus passaportes a possibilidade de optar, além dos sexos “masculino” e “feminino”, por um gênero “indeterminado”. Cabem aí todas as possibilidades de definição de Laerte, ou qualquer outra que aparecer. A própria sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) já é utilizada por alguns grupos como LGBTIQ – adicionada de “intersex” e “questioning” (“em dúvida” ou “explorando possibilidades”).
Com a mudança no passaporte, a Austrália na prática estende para todos os cidadãos o direito conquistado na Justiça em março do ano passado por Norrie May-Welby. Norrie, que nasceu homem, havia feito cirurgia de sexo para se tornar mulher, mas não se adaptou à nova condição. Recorreu à Justiça e se tornou a primeira pessoa do mundo a ser reconhecida como “genderless”, ou sem gênero específico. Após a decisão, Norrie May-Welby declarou: “Os conceitos de homem e mulher não cabem em mim, não são a realidade e, se aplicados a mim, são fictícios”. O sobrenome de Norrie, aliás, é um trocadilho com “may well be”, que em inglês significa “pode bem ser”.
Para chegar à decisão, dois médicos o examinaram e concordaram que Norrie é psicológica e fisicamente andrógino. May-Welby comemorou a libertação da “gaiola do gênero” e sua história detonou uma discussão no país sobre a criação de direitos específicos para as pessoas sem gênero. Um problema prático é justamente a identificação em documentos oficiais. Para um homem transexual que fez a cirurgia de mudança de sexo, é possível em vários países mudar também os documentos. Mas o que fazer com os que não desejam ser identificados por gênero algum? “O caso de Norrie evidenciou a existência de pessoas que não desejam ter um sexo específico”, disse em dezembro John Hatzistergos, procurador-geral de New South Wales, o estado mais populoso da Austrália.
Nascida mulher, a filósofa espanhola Beatriz Preciado, autora do livro Manifiesto Contrasexual, uma provocação intelectual que pretende subverter os conceitos de gênero e sexo é, ela própria, um ser híbrido que recusa qualquer definição. Preciado não se considera nem homem nem mulher nem homossexual nem transexual. Perguntada pelo jornal catalão La Vanguardia sobre seu gênero, Beatriz respondeu: “Esta pergunta reflete uma ansiosa obsessão ocidental, a de querer reduzir a verdade do sexo a um binômio. Dedico minha vida a dinamitar esse binômio. Afirmo a multiplicidade infinita do sexo”. Segundo a filósofa, a sexualidade humana é como os idiomas: pode-se aprender vários.
Há psicólogos que concordam com Beatriz ao defender que uma coisa é o gênero e outra, completamente distinta, a atração sexual. Isso é o que torna possíveis os inúmeros casos relatados de indivíduos que fizeram cirurgia de mudança de sexo para se tornarem não heterossexuais, mas homossexuais. Explico: um homem, por exemplo, que se torna mulher não para ter relações com homens, como se poderia imaginar, mas com mulheres. Ou seja, que troca de sexo para ser gay.
Aconteceu recentemente na Itália: Alessandro Bernaroli, de 40 anos, submeteu-se a uma mudança de sexo e tornou-se Alessandra em 2009, mas ele e a esposa não tinham a intenção de se separar, queriam permanecer juntos. O mais incrível é que acabaram alvos de um divórcio à revelia pela Justiça italiana, baseado no fato de o país não permitir legalmente casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Alessandra está recorrendo no tribunal de última instância e pode ir à Corte Europeia de Direitos Humanos se o seu direito de permanecer casada não for reconhecido.
Há três anos, então aos 81, a escritora Jan Morris, que deixara de ser James através de uma cirurgia em 1972, decidiu casar novamente com sua companheira de toda a vida, Elizabeth Tuckniss. Eles tiveram cinco filhos juntos e nunca se separaram de fato, mesmo após a cirurgia. Por exigências legais, porém, haviam se divorciado logo depois de James se tornar Jan. James Morris, o primeiro jornalista a anunciar a conquista do Everest, diz, em seus relatos autobiográficos, que se transformou em Jan, mas nunca se sentiu homossexual, e sim “erroneamente equipado”. Achava que deveria ter nascido mulher e fez a cirurgia para corrigir o equívoco divino – o que não significava que quisesse abrir mão do amor de Elizabeth.
“Esses casos comprovam que gênero e atração sexual podem ser coisas
separadas. É muito complicado, há pessoas que nunca se conformam em ser enquadradas em um gênero”, diz o psicólogo Anthony Bogaert, professor do Departamento de Ciências Sanitárias da Brock- University, no Canadá. “Gênero é uma construção complexa. Ser macho ou fêmea, assumir papéis mais femininos ou mais masculinos, não vai necessariamente indicar que tipo de pessoa atrairá sexualmente um indivíduo. Homens com características mais -femininas, por exemplo, ou até transexuais, não necessariamente tenderão a se relacionar com pessoas do mesmo sexo.”
Apesar das diferenças que estabelece entre gênero e orientação sexual, Bogaert considera discutíveis experiências como a do casal canadense Kattie Witterick e David Stocker, que, revelou-se ao mundo em maio, pretende manter o sexo de seu bebê, chamado apenas de Storm (tempestade), como um segredo de família. Isso significa que Storm crescerá sem gênero definido. Acossada por críticas de psicólogos, a mãe justificou-se dizendo ter tomado a decisão por causa da pressão sofrida por Jazz, seu filho mais velho, um garoto que gosta de usar tranças e sempre vestiu roupas de menina, para que “agisse como menino”.
Caso parecido aconteceu há dois anos na Suécia com o bebê “Pop”, gênero não revelado, que aos 2 anos podia escolher se queria usar vestidos femininos ou roupas de garoto. “Nós queremos que Pop cresça o mais livremente possível, queremos evitar que seja forçado/a a assumir um gênero específico ditado pelo exterior”, explicou a mãe da criança. “É cruel trazer uma criança ao mundo com uma estampa azul ou cor-de-rosa pregada na testa.”
Uma pré-escola na Suécia, a Egalia, baniu os termos “ele ou ela” para se referir aos pequenos alunos, que não são tratados como “meninos” ou “meninas”, mas como “amiguinhos”. Na brinquedoteca, a cozinha, com suas panelas e outros utensílios, supostamente “de predileção” nata das meninas, fica ao lado das peças de Lego e brinquedos de montar, normalmente “preferidos” pelos meninos, para que as crianças não tenham “barreiras mentais” e se sintam livres para escolher entre as duas brincadeiras. O sistema é chamado de “educação neutra em gênero”, mas já há quem tenha apelidado a ideia de “loucura dos gêneros”.
Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, a antropóloga Regina Facchini vê, no entanto, alguns aspectos positivos em não se enfatizarem gêneros e fortalecer estigmas na educação de crianças. “Em termos individuais, acho impossível criar uma criança sem gênero. Mas intervir no social, na escola, e não no sujeito, pode ser interessante.” A pesquisadora lembra que, no Brasil, os parâmetros curriculares aconselham fazer o possível para não estabelecer diferenças entre gêneros. Até mesmo em coisas pequenas, mas que denotam estereótipo, como, por exemplo, dar para os garotos a função “masculina” de carregar coisas pesadas.
“Existem discussões candentes hoje em dia. Os banheiros das escolas atendem os alunos transexuais? Agora, a identidade de gênero existe. Desde o momento que a criança botou a cabeça para fora, ela vai sendo construída, a partir das expectativas criadas em torno dela pelos pais, pela sociedade. Essa é uma realidade”, diz a antropóloga. “Sem dúvida, quanto menos a escola enfatizasse gêneros, menos seria traumático para algumas crianças. Assim como também seria positivo ensinar que existem várias formas de masculino e feminino que devem ser respeitadas. O que existe na maior parte dos lugares é o oposto disso.”
Até os 7 anos, o paulista Leo Moreira Sá, caçula de nove irmãos, brincava com os amigos no quintal, todos meninos, usando um short sem camiseta. No dia que ele conta ser o mais chocante de sua vida, a mãe vestiu-o com o uniforme da escola, uma sainha com blusa. Ele reclamou: “Mas isso é roupa de menina”. Ela olhou-o profundamente nos olhos e pronunciou a frase que o marcaria dali por diante: “Você É uma menina”.
Foram anos de rebeldia, bullying e inadaptação escolar até que Leo, então Lou Moreira, entrou para as Ciências Sociais da USP e descobriu na literatura algumas respostas para suas dúvidas. Ainda assim, continuava a se sentir inadaptada. Entrou para um grupo ativista de lésbicas, mas não se sentia bem aceita por ser considerada “masculina demais”. O melhor momento para ela então foi a atuação, nos anos 1980, como baterista da banda de punk-rock As Mercenárias, look andrógino, cabelo descolorido curtíssimo e ar desafiador.
Em 1995, Lou era casada com uma garota quando viu na rua a travesti Gabriella Bionda, a Gabi. “Pensei: ‘que mulher linda’”, conta. Gabi olhou para ela e falou: “Que ‘viadinho’ bonitinho”. Foi o início da relação surpreendente entre a lésbica e o travesti, que duraria nove anos e tornaria a dupla figurinha carimbada na noite paulistana. O curioso é que houve um período que Gabi “montava” Lou para que esta parecesse mais feminina, mas, nos últimos anos, ela vem se transformando em Leo. Aos 53 anos, planeja, inclusive, fazer a cirurgia de retirada dos seios e, futuramente, de mudança de sexo.
Não que tenha decidido se pretende se relacionar amorosamente com homem, mulher ou outro gênero. “No momento, não estou me relacionando com ninguém, estou pensando só na cirurgia”, diz Leo, para quem Gabi ainda é o amor de sua vida. “A Gabi é minha alma gêmea, meu espelho invertido. Estar com aquela mulher com corpo de homem quebrou certos limites da minha sexualidade. Na cama, éramos o casal mais versátil que se possa imaginar. Hoje, desfruto de um leque muito amplo de possibilidades. Nada está fechado.”
Leo, que toma hormônios, criou barba e possui uma aparência exterior masculina, rejeita assumir a identidade de homem. Não gosta do termo “transexual”, mas prefere se nomear assim, à falta de outro. “Adoraria não precisar assumir gênero algum”, admite o ator, que integra o grupo de teatro dos Sátyros, em São Paulo, cujas montagens costumam incluir transexuais e travestis no elenco. “Vivi à margem durante muitos anos. Agora, ao contrário, essa sensação de não pertencimento ao mundo me faz feliz, sinto-me um ser humano integral, completo. Vou operar para fazer um ajuste, para me sentir mais cômodo com meu próprio corpo. Mas assumir um gênero, para quê?”
Cynara Menezes
Cynara Menezes é jornalista. Atuou no extinto "Jornal da Bahia", em Salvador, onde morava. Em 1989, de Brasília, atuava para diversos órgãos da imprensa. Morou dois anos na Espanha e outros dez em São Paulo, quando colaborou para a "Folha de S. Paulo", "Estadão", "Veja" e para a revista "VIP". Está de volta a Brasília há dois anos e meio, de onde escreve para a CartaCapital.
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