Por Caroline Avendaño (carolavendano@gmail.com) e Denise Barbosa (denise.cr@hotmail.com)
Imagine uma combinação trágica entre sonhos e violência, glamour e dor, carência afetiva e sexualidade exacerbada: esse é o mundo das travestis. Uma mescla de antagonismos, realidades, conceitos e sentimentos. Amadas por alguns ao cair da noite na cidade e repugnadas por todos no surgir da aurora. Toda a complexidade do ser homem e ser mulher. Ser travesti, nas palavras de Vanessa, “não é querer ser mulher… É mais do que uma mulher… É mais bonito que uma mulher, é melhor que uma mulher!” (trecho extraído do livro Engenharia Erótica: travestis no Rio de Janeiro, de Hugo Denizar, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997). A travesti nunca é um ou o outro, ela tem a capacidade da dualidade do ser. Ou seja, ser travesti não é fácil, sua história é trágica desde o seu princípio: das dúvidas à afirmação, preconceitos na escola, expurgação do seio familiar, início na prostituição, convivência com a violência das ruas, transformações dolorosas no corpo, desassistência do poder público e preconceito por todos os lados: essa é a trajetória, ou como prefere falar o teatrólogo Silvero Pereira, é a condição de vida de grande parte das travestis. Silvero prefere esse termo em oposição à história de vida: “Quando você a vê (a travesti) na rua, se prostituindo, não imagina a história que levou àquilo, você julga pelo momento, pela condição atual. Mas, na realidade, o que a levou a isso? A gente tem a mania de julgar pelo que a gente vê, mas aquela não é a história que ela quis para a sua vida, e sim uma condição à qual ela foi submetida, na maioria dos casos (…) a minha intenção é que as pessoas vejam as travestis pelo que elas viveram e não pela condição que ela está naquele momento.”
A travesti nas artes
Pesquisador sobre o universo das travesti já há oito anos, há seis Silvero realiza espetáculos mostrando esse universo na tentativa de quebrar preconceitos, trazer mais aceitação e compreensão das famílias que convivem com a realidade da homossexualidade. O espetáculo mais recente “Engenharia Erótica: Fábrica de Travestis” é uma versão mais comercial dos produzidos anteriormente. Diretor e ator na peça, Silvero afirma que sofreu preconceitos até mesmo dentro da classe artística. Segundo ele, a pressão deu-se por vários motivos: o primeiro, pela própria temática em si; o segundo ocorreu pela errônea idéia de que todo homem que faz teatro é gay e realizando-se um espetáculo com show de transformismo e sobre travestis, só reforçaria esse pré-conceito.
A série de produções iniciada em 2004 com a esquete “Uma Flor de Dama” baseado no conto de Fernando Abreu, Dama da Noite, possuía um público de, no máximo, 15 a 20 pessoas. Seguido do “Cabaré da Dama” e a partir da participação e reconhecimento em vários festivais da área, como o IX Festival do Recife de Teatro Nacional e o prêmio de melhor ator no XIII Festival Nacional de Teatro de Guaramiranga, os espetáculos passaram a ter maior aceitação do público. Prova desse sucesso foi a última produção da série, a peça Engenharia Erótica, que teve a derradeira apresentação no dia 24 de junho, contando com cerca de 150 pessoas por sessão, em oito apresentações, levando-se em consideração também o alto valor do ingresso para a realidade cearense (20 reais) e a maior heterogeneidade de público: casais heterossexuais, senhores e senhoras de idade, além dos jovens, público cativo das outras versões.
A travesti na cidade
Apesar da falta de dados oficiais, considera-se que existem, no Brasil, cerca de 20 a 30 mil travestis (dados do Grupo Gay da Bahia) e, em Fortaleza, cerca de 600, segundo a Associação dos Travestis do Ceará. A maioria vive da prostituição, mas existem exemplos como o de Luma Andrade, que é considerada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transsexuais (AGBLT) como a primeira travesti do país com doutorado, este em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Apesar do preconceito que sofreu para ensinar nas escolas, Luma hoje é servidora concursada do Estado, na Secretaria da Educação, e coordena 28 escolas em 13 municípios do interior do Ceará. Temos ainda Andrea Rosati, assessora especial para políticas públicas LGBTT da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social – STDS e Lena Oxa, apresentadora do programa Tribos GLS da TV Diário. É fato: grande parte das travestis parte para a prostituição (e todas as outras são estigmatizadas por isso) a partir da não aceitação de sua sexualidade no núcleo familiar.
Apesar de alguns exemplos de visibilidade das travestis em outras áreas da sociedade, a população só enxerga o que está mais próximo a si: a prostituição nas ruas da cidade, como na avenida José Bastos, Abolição ou na BR-116, próximo a Messejana. Por essas condições de vida, calcula-se que a travesti é mais vulnerável em relação às outras homossexualidades, como gays e lésbicas: é cerca de 260 vezes mais vítima de arma de fogo na rua e muitos destes crimes são cometidos com requintes de crueldade, incluindo tortura e espancamento, ou seja, são crimes de ódio (informações do Grupo Gay da Bahia).
O preconceito e as dificuldades surgem também no acesso a locais e serviços públicos: são discriminadas no atendimento em bancos, escolas e postos de saúde. Neste último, os atendimentos são geralmente marcados no período da manhã, quando as travestis estão dormindo, após a jornada de trabalho noturna. Atitudes simples podem aliviar essa agressão, a começar pela utilização do nome social, que é o nome feminino adotado a partir da transformação da travesti ou permitindo a utilização dos banheiros femininos nesses locais. Inclusive em alguns estados (SC, PR, SP, RJ, BA, AL, PB, PA e GO) as travestis já podem ter seus nomes sociais utilizados em documentos escolares como chamadas, cadernetas, históricos e certificados. O serviço de saúde é ainda mais necessário para este público, pois as travestis, durante o seu percurso em busca das formas femininas, realiza, por meio das “bombadeiras” – travesti que transforma o corpo das suas clientes – uma série de injeções de silicone industrial, imprópria para o organismo humano, num rito de passagem dramático e doloroso, trazendo uma série de riscos à sua saúde. No documentário “Bombadeiras” (2007), Luis Carlos de Alencar desvenda esse universo simbólico de morte e renascimento, revelando como se dá a construção da identidade de gênero da travesti. O vídeo está disponível para visualização online no endereço eletrônico vimeo.com/6653323.
Políticas públicas para travestis
O município de Fortaleza conta com uma Coordenadoria da Diversidade Sexual, parte da Secretaria de Direitos Humanos. O órgão existe desde 2005 e tem como principal função gerir políticas públicas de enfrentamento ao preconceito e à discriminação por orientação sexual. Estão entre as ações da coordenadoria projetos que lutam contra a homofobia e a favor de melhorias nas áreas de saúde, lazer e esporte para o segmento. Em janeiro deste ano, outra importante conquista dos grupos LGBTT a nível municipal foi a permissão para que travestis e transexuais utilizem, em documentos oficiais, o nome social ao lado do nome de registro.
Conheça outras organizações que trabalham em defesa dos direitos das travestis: Associação das Travestis do Ceará – Atrac: (85) 3254-3645 e Grupo de Resistência Asa Branca – Grab: (85) 3253-6197.
Uma Fábrica de Travestis
O espetáculo Engenharia Erótica: Fábrica de Travestis conta a história de quatro travestis: Deydianne Piaf, Yasmin Shyrran, Verónica Valenttino e Gisele Almodóvar. Juntas, elas compartilham com o público os seus sonhos, desavenças e experiências na passarela da vida: as ruas de Fortaleza. Tendo como referência o livro Engenharia Erótica: Travestis no Rio de Janeiro, do fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart, a peça retrata o modo de vida das travestis cearenses para além dos estereótipos e preconceitos.
Conheça algumas palavras do mundo travestido:
Dar linda – Fazer sexo de modo passivo, porém muito prazeroso
Fazer carão – Fazer pose
Fazer pista – Sair para fazer programa na rua
Gravação – Sexo oral
Pêssega – Pessoa não muito provida de esperteza
Pireli – Enchimento, geralmente feito de espuma, com o intuito de replicar as formas femininas
Racha – Mulher
Tia – Aids, bicha vivida.
Truque – A acrobacia feita por travestis, transformistas, drags ou caricatas para esconder o pênis.
(Extraído do folheto da peça)
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